Na parede da memória

De 2015 pra trás[1]

Ewerson Cláudio

O
trem da vida prossegue e a gente vai lembrando de muitas estações. Alguns episódios em minha vida fizeram “anos redondos”, década(s) em 2015. Há trinta anos, entrei para a diretoria da FAMERJ; era fundado o MCR (Movimento Comunista Revolucionário) e ingressei no INPS, atual INSS. Vinte anos atrás, a morte de minha querida mãezinha. Há dez anos, minha saída do PT. Prosseguindo viagem, por uns momentos, é como se o trem passasse de novo nessas estações, mas sem a gente poder saltar e interagir com as paisagens, apenas observá-las e refletir.
“Pela janela do quarto, pela janela do carro, pela tela, pela janela. Quem é ela? Quem é ela? Eu vejo tudo enquadrado, remoto controle”.
Adriana Calcanhoto
1985, maio
Congresso da FAMERJ
F
oi quando entrei para a diretoria da Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro. O movimento de bairros vivia o seu auge e o Grande Rio fervilhava com entidades e lutas a partir do local de moradia das pessoas. O movimento eclodiu no final da década de 1970, principalmente na periferia da capital, em particular na Zona Oeste, na Baixada Fluminense e Niterói/São Gonçalo.
Na Baixada, Nova Iguaçu organizou-se primeiro e já em 1978/1979 o movimento promovia encontros e manifestações de rua de dezenas de associações de moradores de seus cinco distritos (ainda com Belford Roxo, Jaepri, Mesquita e Queimados). Em dezembro de 1981 o MAB – Movimento Amigos de Bairro – fez seu congresso com 54 entidades e fundou a Federação Municipal das AMs de Nova Iguaçu. Logo depois, vieram o MUB (Movimento União de Bairros), de Duque de Caxias, e a ABM (Associações de Bairro de Meriti), em São João de Meriti.
A FAMERJ não surgiu como resultado natural e processual da união dos movimentos de cada município. Ela já existia desde 1978 e, no seu início, constavam apenas dezessete associações de moradores. Um dos fatores que lhe deu relevância foi a luta dos mutuários do BNH, quando liderou a entrada na Justiça para que as pessoas continuassem pagando a prestação da casa própria pela equivalência salarial. Rapidamente, mutuários de áreas periféricas e também da classe média aderiram ao movimento e a FAMERJ integrou a Coordenação Nacional de Mutuários com dezesseis estados, chegando a cerca de 200 mil ações vitoriosas.
Ainda assim, várias federações municipais eram resistentes à FAMERJ, que tinha uma direção oriunda da capital e do eixo Tijuca – Zona Sul. No congresso do MAB em 1981, por exemplo, a integração à FAMERJ não foi um tema presente. Somente em 1983 – quando a FAMERJ fez seu congresso no dia da conquista do tri brasileiro do Mengão (3 a 0 sobre o Santos no Maracanã e a gente ali do lado, na UERJ) - os setores que atuavam em Nova Iguaçu preocuparam-se em buscar espaço na entidade estadual. Jo Resende reelegeu-se presidente, uma liderança independente, que esteve à frente da ampliação política e territorial da entidade.
Muitos petistas atuavam no movimento de bairro pelo estado afora, mas esta ação não era organizada; alguns integravam a direção da FAMERJ a partir de suas trajetórias individuais. Na Ala Vermelha, minha Organização, atuávamos em Nova Iguaçu, São João de Meriti, Duque de Caxias, Vila Kennedy, Irajá, Cidade Alta e Laranjeiras. Tínhamos um bom trabalho de base, mas quando tentamos participar das articulações para a montagem de chapas para a direção da FAMERJ do biênio 1983-1985, já era tarde; ficamos fora da direção. Concorreram duas chapas em eleição majoritária: a vencedora, com Jo Rezende à frente e algumas pessoas ligadas a ele, lideranças ligadas ao PCB (que se fortaleceu com militantes que romperam com o MR-8), PCdoB, PT e uma organização que atuava no PDT (Reconstrução [do Partido Comunista]). A chapa derrotada era organizada basicamente por um setor chamado Poder Popular, que depois virou Coletivo Gregório Bezerra e, posteriormente, PLP (Partido da Libertação Proletária); eram fortes na Zona Oeste e atuavam no PDT. Seu principal líder era Beto Cacau (Beto Matos), militante de excelente oratória de plenário e que, curiosamente, era calvo e usava cavanhaque, lembrando Lenin. Nesta chapa, ainda tinha o MTS (Movimento dos Trabalhadores Socialistas) e um jovem radialista de Campos dos Goytacazes, Anthony Matheus, também chamado de Garotinho...
Finalmente, veio o congresso de 1985. Repetiram-se a disputa e o resultado entre uma chapa de leque mais amplo (PT, PCB, PCdoB, PDT) e outra mais restrita a correntes que atuavam no PDT. O já conhecido professor e historiador Chico Alencar, na época morador da Tijuca e sem filiação partidária, foi eleito presidente. A secretaria e a tesouraria possuíam três integrantes. Antonio Ivo (PCB, de Nova Iguaçu) era o secretário-geral e eu fiquei na 1ª secretaria.
Foi um excelente período de aprendizado político, de contato com uma realidade mais abrangente do movimento das associações de moradores e convivência cotidiana com muita gente boa. Discutíamos a unificação de lutas que eram travadas em várias regiões, a interrelação de várias reivindicações, a organização em si do movimento, sua interiorização pelo estado etc.. Nesse período, a principal bandeira era a luta dos mutuários do BNH, que notabilizou a FAMERJ e permitiu-lhe uma política de arrecadação que viabilizou sua auto-sustentação financeira por um bom tempo (comprou e reformou uma sede de três andares na rua Visconde do Rio Branco, próximo ao Campo de Santana). Essa luta era o carro-chefe da FAMERJ já há algum tempo e a “nova diretoria” tinha pouca interferência em seus rumos. A entidade organizava também uma política de abastecimento que articulava pequenos produtores de horti-fruti em Paty do Alferes e outras regiões do estado, transportando seus produtos para o CEASA e dali para vários bairros do Grande Rio. O saneamento básico passaria a ser uma luta importante, fortalecida com a “chegada” das federações da Baixada Fluminense. O leque de reivindicações era interminável e, além disso, o movimento discutia as questões políticas estaduais (as ricas contradições do governo Brizola entre 1983-1986) e nacionais, do início da “Nova República”, a redemocratização por cima, que, com a morte do moderadíssimo Tancredo Neves, teve no comando José Sarney (presidente da ARENA, em 1979, e do PDS, em 1980, ambos partidos da ditadura), que trocou de time – e de posição! - na hora certa.
Em agosto de 1986, a FAMERJ organizou o “Congresso constituinte dos bairros”, com centenas de representantes para discutir as propostas que o movimento defenderia nas eleições de 1986, que escolheria o Congresso Constituinte. Momento riquíssimo, onde não havia a disputa por espaços de poder na entidade, somente discussão política. Lembro-me de um trecho da fala de saudação ao congresso do Bispo da Diocese de D. Caxias, Dom Mauro Morelli. Algo do tipo: “Se as elites consideram que os movimentos populares são um inferno, então, inferno neles!”. Também em 1986, Antônio Ivo licenciou-se da secretaria-geral da FAMERJ para ser candidato a deputado estadual pelo PCB. Assumi o cargo em junho e fiquei o restante do mandato, pois, mesmo não tendo sido eleito, ele não reassumiu a antiga função.
Além de militantes de Nova Iguaçu que atuavam na FAMERJ (Aluísio Bevilaqua, Ana Alice, Antônio Ivo, Bráulio Rodrigues, Dilceia Quintela, Fatima de Souza, Lúcia Souto, Nelson Nahon, Rose Souza, etc.) e da Ala Vermelha (Lourdes Vieira, Vilma Costa, Wilton Porciúncula etc.), conheci pessoalmente Chico Alencar, Almir Paulo, Beto Cacau, Dolores Otero, Hélio Porto, Homero de Souza, Joaquim Ribeiro, Jorge Florêncio, as gêmeas Karla e Kátia, Luiz Marcolino, Luizinho, Marli Helena, Nadja Xavier, Pereira, Rubens, Sérgio Andrea, entre outros. A FAMERJ tinha também uma particularidade: um enorme corpo de funcionários da estrutura da luta dos mutuários (dezenas, uns cinquenta, talvez!), além dos que trabalhavam na estrutura da entidade propriamente dita. Ali, conheci militantes valorosos, que atuavam em seus bairros, municípios, movimento cultural, estudantil, partidos etc., que desempenhavam suas funções na entidade e, sempre que necessário, organizavam-se para reivindicar seus direitos enquanto trabalhadores da FAMERJ: Carmen da Matta, Genário de Moura, Gilberto Estrela, João Xavier, Marisa Gonzaga, Nonô, Ostinho, Paulinho, Sandra Moraes, Vitor Mota etc.. Recentemente, Marisa lembrou-me que na posse do Chico como presidente, os funcionários da FAMERJ fizeram um protesto e foram exigir dele providências para regularização dos seus salários. Foram dois anos de inúmeras atividades, além das reuniões semanais, que sempre tinham lanchinho. Ao final desse período, pensei num título de um futuro texto – uma de minhas manias -, “Vontades de uma segunda-feira vazia”.
O movimento de bairros foi um forte ator durante a década de 1980 e a FAMERJ conseguiu ser a expressão disso. Era natural que, com o caminhar da redemocratização, este movimento projetasse algumas de suas lideranças para o campo institucional partidário. Logicamente, muitos ativistas comunitários apresentaram-se como candidatos nas eleições daquela década. Fora da capital, partidos e candidaturas de esquerda ainda não acumulavam força suficiente para sobrepor o velho fisiologismo ou o rastro populista de Brizola (note-se que o PDT elegeu dezenas de parlamentares municípios afora, mas quase nunca gente séria do movimento popular).
Em 1985, o Brasil voltou a ter eleições para prefeito das capitais e de “áreas de segurança nacional” (no RJ, Volta Redonda, por causa da CSN, e Angra dos Reis, por causa das usinas atômicas). Ainda em turno único, na capital, o PDT com Saturnino Braga e coligado com o PCdoB fez 37,8% dos votos, cerca do dobro do seu principal oponente, Rubens Medina, do PFL (atual DEM). O detalhe é que o vice de Saturnino foi Jô Rezende. Evidentemente que a principal liderança da FAMERJ não foi determinante para a vitória, mas foi simbólico o brizolismo ter feito esta escolha. No campo dos partidos socialistas e de caráter popular, o PSB – com Marcelo Cerqueira prefeito e o comunista João Saldanha (PCB) de vice – chega em 4º lugar com 7,2%. O PT amargou o 9º lugar com 1%, numa eleição com 19 candidatos.
Em 1988, Chico Alencar elege-se vereador na capital pelo PT. Das lideranças da FAMERJ, é o único que se firma no cenário parlamentar, sendo vereador até 1996, deputado estadual de 1999 a 2002 e federal de 2003 até hoje (a partir de 2005, no PSOL). Em Nova Iguaçu, a médica e ex-dirigente do MAB, Rose Souza, elege-se vereadora em 1988 e a deputada estadual em 1990 pelo PT. Lúcia Souto (também médica iguaçuana e ex-dirigente do MAB) torna-se deputada estadual entre 1991 e 1998 pelo PPS. Em 1992, Homero de Souza foi candidato a prefeito no Rio pelo PFS (Partido da Frente Socialista), ex-PLP e que iria juntar-se com a Convergência Socialista e formar o PSTU. Sob o lema “O Rio precisa de uma revolução”, Homero fica em último lugar, obtendo 0,44% dos votos numa disputa entre onze candidaturas.
No congresso da FAMERJ de 1987, o presidente escolhido foi Almir Paulo, de Jacarepaguá (à época, filiado ao PDT, da corrente Reconstrução). Era uma direção com bastante renovação. Não permaneci na diretoria e o companheiro Vitor Mota substituiu-me como representante da corrente MCR. Também não estava mais na diretoria do MAB (que fiquei até 1985), nem da associação de moradores do meu bairro, Santo Elias. Eu já vinha concentrando minha militância mais nas instâncias partidárias do PT e ajudando também o movimento sindical.
Só agora tive a oportunidade de folhear rapidamente a dissertação de mestrado de Chico Alencar[2], uma valiosa contribuição para uma reflexão sobre a FAMERJ. Em setembro de 1988 escrevi o texto “Assim se passaram aqueles dez anos[3], avaliando aquele período. A partir de meu local principal de militância, a Baixada Fluminense, busquei analisar a travessia do movimento de bairro entre o início da “abertura” do regime militar e a consolidação da redemocratização, sob quatro aspectos:
a)    Do ponto de vista geral, os movimentos sociais carregavam uma bandeira unificada (“abaixo à ditadura”), divergindo apenas em pontos menores. Com a redemocratização, o dilema apoio–independência–oposição em relação à oposição institucional ao regime militar (PMDB e PDT) tornou-se um divisor de águas, deixando de existir uma bandeira geral que unificasse as diversas correntes de pensamento do movimento popular;
b)    No início, todos respaldavam o movimento, favorecendo a inserção de enormes contingentes das massas nas associações de moradores. A partir de 1983, a burguesia liberal e o populismo passam a governar estados, a disputar abertamente a influência dentro do movimento de bairros e a concorrer com estes, diminuindo sua visibilidade. No caso do Rio de Janeiro, a “ascensão tardia” do movimento sindical combativo, que só acontece a partir de meados da década de 1980, também contribui para a “concorrência” de outros atores sociais;
c)    Se antes existia um eixo básico que sustentava as reivindicações - a participação popular nas decisões governamentais -, isto foi, em parte, atendido e esvaziado pelos governos e, mesmo percebendo os limites e armadilhas, as associações de moradores não conseguiram estabelecer um novo eixo e formas de luta para superar este impasse;
d)    No início, a disputa de projetos de sociedade no interior do movimento se dava basicamente dentro do campo dos setores populares. Depois, a esquerda passou a dividir esse espaço com projetos políticos da oposição liberal e com outros setores que não trabalhavam na perspectiva da transformação social e queriam apenas ser funcionais ao capitalismo.
Assim, a crise que a FAMERJ e a base das associações de moradores passaram a viver a partir do final da década de 1980 foi fruto de uma tendência geral dos movimentos sociais, envolvendo desde as estratégias dos governos até a capacidade de resposta e organização do próprio movimento. Sua análise não pode ser reduzida à esquemática dicotomia do esquerdismo, que estreitou a luta e perdeu visibilidade, ou do reformismo, que “afrouxou” os horizontes.
Observando de fora do tempo e lugar, mil coisas nos vêm à cabeça. Destacaria um aspecto: como que os movimentos sociais (não só o de bairro; não só movimentos, mas também partidos de esquerda) não perceberam e/ou não investiram em questões relacionadas a cultura, comunicação e formação na perspectiva da disputa de hegemonia e viram sua forte combustão esvair-se no imediatismo e no economicismo de cada corporação.
1985, setembro
Surge o MCR

C
onsidero que este foi um marco na história recente da esquerda brasileira. Mesmo tendo sido uma modesta organização política que atuou no interior do PT, o Movimento Comunista Revolucionário teve a particularidade de se inscrever num capítulo raro das esquerdas: de ter sido fruto da unificação de vários agrupamentos, e não de um racha.
Os primeiros anos da construção do PT foram ricos em diversos aspectos. Acelerava-se o desgaste da ditadura militar; surgiam movimentos como o novo sindicalismo, as comunidades eclesiais de base, sem-terras, movimentos sociais urbanos como as associações de moradores etc.. No plano interno, o PT era uma nova e rica experiência. Se é verdade que ao lado dos novos movimentos estiveram quadros intelectuais e organizações políticas de diversos matizes que já existiam antes do PT, é verdade também que nada permaneceu como antes.
A disputa de projetos reunia dois blocos. Um, era liderado por Lula e os novos sindicalistas (do ABC paulista, mas também Olívio Dutra, do RS, e muitos outros) e boa parte de militantes oriundos da chamada “igreja progressista”. O outro bloco era constituído pelas organizações, a maior parte delas constituída ainda no período de luta armada contra a ditadura militar ou no final da década de 1970. Intelectuais e dirigentes políticos que tinham voltado do exílio mantinham ligações com um ou outro campo e alguns permaneceram independentes. No 3º encontro nacional, em 1984, essa disputa entre dois campos ficou mais acirrada, com a chapa de Lula (ainda não existia a Articulação) vencendo a das organizações por 65% a 35%.
A partir da convivência na dinâmica nacional do PT, em meados de 1983 três correntes começam a discutir a possibilidade de um novo patamar de relação entre si: a Ala Vermelha, o MEP (Movimento de Emancipação do Proletariado) e a OCDP (Organização Comunista Democracia Proletária). Mesmo com trajetórias diferentes, possuíam visão comum sobre alguns temas, como a redemocratização controlada pela burguesia; necessidade de um amplo e longo trabalho de massas; PT como partido estratégico, mas, ao mesmo tempo, com a necessidade da união dos setores revolucionários em seu interior. Foi montada uma Comissão Política de Unificação que conduziu o processo de discussão. Na medida em que o debate foi acontecendo, confirmou-se a perspectiva de unificação.
A Ala Vermelha era a menor das três organizações. Naquele momento existíamos, de fato, no RJ, RS, e DF. Em SP, praticamente toda nossa militância havia se desligado. O MEP, mesmo após um forte racha nacional ocorrido em 1982, era a maior corrente, presente em todas as regiões do país e com maior expressão no RJ e em SP. A OCDP (falávamos DP) era a mais recente – surgiu de alguns ex-integrantes da APML (Ação Popular Marxista-Leninista) no início dos anos 1980 – e a única que estava em fase de crescimento, tendo a BA como seu epicentro.
Eu havia entrado na Ala vermelha (AV) em março de 1981 (mesmo mês que me filiei ao PT) e, à época da unificação, eu era da direção estadual da organização, tendo acompanhado bem de perto os informes otimistas sobre o processo. A formação do MCR foi um importante up grade na minha militância, tendo conhecido nacionalmente inúmeros quadros políticos, parte dos quais com quem convivo até hoje. Lembro-me de um episódio ao mesmo tempo rico e engraçado: as três organizações estavam finalizando seus processos internos que confirmariam a fusão e a DP realizaria seu último encontro estadual da BA, local onde eles tinham maior expressão. Ala e MEP comprometeram-se a enviar representantes. Como na Ala a coisa era mais bagunçada, Neiva disse-me que nenhum dos integrantes do Comitê Central podia ir, que era importante nossa presença lá e que ele tinha pensado em mim. Fiquei apavorado! Isso era coisa para dirigente nacional, eu não conhecia ninguém de lá. Ele me acalmou: “É tudo gente boa, falam demais, mas são super legais...”. Em março de 2003, alguns dias após a morte do baiano Genildo Batista, escrevi:
Lembro-me do meu primeiro contato com Genildo. Era 1985. (...) Na clandestinidade, esqueci de comprar o Jornal dos Sports, que seria minha senha. Depois de ficar espreitando-me por uns cinco minutos, Jorge Lessa aproximou-se e perguntou se eu estava ali para o “casamento”. Respondi que sim e demos um forte aperto de mão. Isso tudo numa praça... em frente à Secretaria de Segurança. Logo depois, estava num fusca dirigido alucinadamente por um albino que quase encostava o rosto no pára-brisa e pingava um colírio ao mesmo tempo em que dirigia – assim conheci Franklin. Na travessia para Itaparica, no Ferry Boat, um negro alto, de gestos pacientes, altivo e de fala pausada argüia-me sobre as posições da Ala Vermelha: União Soviética, estratégia do socialismo no Brasil, papel do PT – assim conheci Genildo (e o Neiva, no Rio, dizia-me que não tinha problema o fato de eu não ser do Comitê Central e só ter 23 anos, que a discussão ia ser fácil...).
Além de Franklin Oliveira Jr., Genildo Batista e Jorge Lessa, neste encontro conheci também os baianos Eliziário Andrade, Eugênio, Gilmar Evangelhista, Hamilton Assis, João Dantas, Jorge Almeida, Moacir Pinho e Valdízio, entre outros (Nelson Pelegrino conheci depois). Aqui no Rio de Janeiro, conhecíamos as pessoas do MEP, mas foi o MCR que possibilitou minha maior convivência e amizade com Aliezo, Aninha, Cliveraldo, Iná Meireles, Joel, Luiz Arnaldo, Nivaldo, Toninho (que depois foi para Brasília) e Wadih, entre outros. Nacionalmente, foi quando conheci os paraenses Aldenor Jr., Araceli Lemos, Edmilson Rodrigues, Luiz Araújo e Marinor Brito; Maninha, de Brasília; a piauiense Lujan Miranda; as capixabas Brice Bragatto (que, depois, descobri, é sobrinha da minha madrinha de Crisma), Marli Brígida e Rita Rios; os paulistas Ivan Valente e Miguel Carvalho e o baiano Cândido Vacarezza, transferido para SP; os catarinenses Afrânio Bopré e Luiz Sérgio Gomes e os gaúchos Eno Filho e Luix Costa, o Índio (um carioca, na verdade). Apostando na unificação in loco, a DP transferiu militantes seus da BA para São Paulo e Rio de Janeiro. Foi assim que conheci os jovens Chico, do comitê central, e Iraneth, que atuava na oposição bancária em Salvador e de quem me tornei grande amigo naquele período. Moravam num apartamento na André Cavalcanti, onde fazíamos muitas reuniões e bate-papos, ouvíamos discos e bebíamos nos bares do entorno. Foi também do apartamento de Iraneth, agora próximo à UERJ, que partiu, em dezembro de 1987, o espetacular bonde (na verdade, um chevete) composto por mim, Neiva, Cid Benjamin, Elizana Costa e Sérgio Ricardo (cinco pessoas, quatro setores do partido) para o 5º encontro do PT em Brasília e para a conquista do tetracampeonato brasileiro do Mengão – mas essa história será contada à parte.
Fizemos o encontro nacional da Ala Vermelha no Rio de Janeiro. Os militantes do DF que ainda se mantinham orgânicos (já tínhamos perdido quadros como Hélio Doyle e Armando Rollemberg) chegaram com posição fechada contra a unificação, pois consideravam que aquilo era uma diluição do verdadeiro núcleo revolucionário, uma política “liquidacionista”. Não estou fazendo caricatura, era isso mesmo. Num documento, disseram que os “fusionistas” eram “trânsfugas” (desertores, renegados). Participaram do início do encontro, firmaram posição e foram embora. Assim, o que sobrou da Ala Vermelha apostou todas as fichas na nova organização, que teria mais militância orgânica nos movimentos sociais e no partido. De nossa parte, na prática circunscritos ao RJ, estávamos presentes na capital e na Baixada Fluminense, com bom enraizamento em categorias como metalúrgicos, ferroviários e bancários e no movimento de bairro (nossos professores, que não eram poucos, atuavam nas associações de moradores e não no CEP, o Centro Estadual de Professores – com certeza, um erro estratégico).
Na fase final de um processo que levou dois anos, a ORM-DS (Organização Revolucionária Marxista Democracia Socialista) solicitou entrada no processo de unificação. Divergências relacionadas principalmente à ligação orgânica da DS com um setor da IV Internacional, o Secretariado Unificado, que tinha Ernest Mandel como referência, fez com que essa possibilidade fosse rejeitada. A DS era bem grande, talvez maior que o novo MCR e a relação entre marxistas-leninistas “clássicos” e um setor do trotskismo era, de fato, pouco provável.
Em setembro de 1985, surgia, então, o MCR, Movimento Comunista Revolucionário. Sua direção nacional (acho que ainda chamávamos de comitê central) era tripartite. Tempos depois, Neiva disse-me que propôs meu nome, mas fui considerado, por alguns, muito jovem. Um fato interessante na unificação foi como resolver a polêmica sobre a questão internacional, que sempre foi cara, simbólica e embaraçosa para os revolucionários e, àquela época, muito mais concreta, pois o mundo se dividia a partir de duas grandes potências políticas, econômicas e militares. DP e Ala eram radicalmente contra a URSS (socialismo burocrático, degenerado, estagnado...) e o MEP era radicalmente a favor (havia dois campos no mundo, o capitalista e o socialista...). Que fazer, literalmente falando? A solução foi ...congelar o assunto, valorizar as convergências, acumular e refazer esse debate posteriormente. Mesmo antes da rápida derrocada da URSS e do leste europeu, a postura sobre o tema na fundação do MCR mostrou-se um acerto. Estabelecida a convivência cotidiana e construídos os laços de confiança, percebeu-se que a discussão não era tão estanque como parecia inicialmente. Mesmo entre os militantes dos agrupamentos originais, havia ponderações sobre as respectivas posições majoritárias e as reflexões entrelaçaram-se, possibilitando uma nova síntese, atualizada, claro, pelo vendaval restaurador, afinal, com o fim do “leste”, o que imperou foi a lei do “velho oeste”.
De forma não organizada uma parcela, ainda que pequena, de nossa militância não prosseguiu conosco. Uns reclamavam do rigor orgânico, outros – engraçado! – da falta dele. O caráter “revolucionário”, numa contraposição às indefinições ideológicas do PT, também incomodava a alguns, ao passo que a atuação de comunistas num partido amplo era, igualmente, motivo de inquietação. No Rio de Janeiro, Jorge Bittar fora escolhido como nosso candidato a deputado federal em 1986 (ficou como 1º suplente de Vladimir e Benedita), mas, já durante a campanha, não pertencia a nossos quadros orgânicos. Outro dirigente estadual da AV, João Pedro, foi vivenciar a experiência do PCB legalizado em 1985 (“lugar de comunista é no PCB”), porém, voltou ao PT (mas, não ao MCR) menos de dois anos depois.
No Rio de Janeiro, já convivíamos no partido e em alguns movimentos com os militantes do MEP, mas disputávamos a direção do PT estadual em chapas separadas. Tínhamos mais identidade, inclusive, com pessoas que pertenciam ao racha do MEP. Em 1982 apoiamos Sidney Lianza a deputado federal e, na atuação em Nova Iguaçu, éramos muito colados com Rose Souza, ambos ex-MEP.  Já no MCR, tínhamos unidade nas questões gerais e na atuação nos movimentos, mas, em 1986, apoiou-se duas candidaturas a deputado estadual. A militância originária da Ala optou por Cid Benjamin, que na época tinha posições próximas às nossas, enquanto que os oriundos do MEP trabalharam a campanha de Cliveraldo Nunes, membro do MCR. As argumentações eram, por um lado, a possibilidade de eleger um parlamentar que, mesmo independente, abriria espaço para organizações de esquerda e, de outro lado, a aposta e construção de um militante orgânico. Cid foi o 2º suplente de uma bancada de quatro deputados, enquanto que Cliveraldo teve uma votação bem menos expressiva. A cearense Abgail Paranhos (independente amiga nossa, faleceu em 1994, aos 49 anos) brincava que a corrente resultante da junção do MEP com a Ala era “MALA”. Ao final, até que o apelido ficou literalmente mais leve: MCR virou Mocoré.
O MCR foi uma corrente política mais robusta do que suas antecessoras e viveu um novo patamar político e organizativo. Crescemos no rastro da ampliação do PT e do ascenso do movimento sindical e popular daquela década. Já em 1986, elegemos deputados estaduais (Ivan Valente em SP e Edmilson Rodrigues no PA). No movimento sindical, tivemos bastante expressão a partir dos professores do PA (SINTEP), petroquímicos da BA e ferroviários e metalúrgicos no RJ, além de inúmeros outros trabalhos país afora, é claro. Em 1988, organizaríamos uma corrente sindical chamada Força Socialista, que agrupava ativistas que não eram militantes orgânicos do MCR. No debate sobre estratégia, acumulamos a formulação sobre Programa Democrático-Popular. Começamos a consolidar esta posição num encontro nacional da corrente em meados de 1987 e o PT viria adotá-la no histórico 5º encontro, em dezembro daquele ano. Provavelmente devido a nosso pequeno tamanho, não tivemos protagonismo neste episódio.
Tivemos ricas discussões, onde a reflexão sobre concepção sindical foi um momento de destaque. Mesmo naquela conjuntura de ascenso, já nos preocupávamos com o economicismo e o corporativismo (“sindicalistas como uma espécie de corretores da força de trabalho”); a democracia nas entidades etc. Em 1987, escrevi o texto “Pelo abraço mais forte, obrigado, companheiro”[4] onde, de forma truncada e ainda muito internista e codificada, começava a abordar a relação do que era considerado (pelo menos na minha experiência) marxismo-leninismo diante de temas comportamentais como homossexualismo, drogas, conciliação da militância com perspectiva profissional etc..
Considero que o MCR vivenciou um momento de transição em que as organizações políticas anteriores ao surgimento do PT foram adaptando-se a dois processos: um, ao novo regime político capitalista no Brasil, uma democracia, ainda que de corte elitista e autoritário e, o outro, à dinâmica de construção de um partido socialista amplo, com seus rumos em aberto e com uma vida orgânica que envolvia muito mais do que as autoproclamadas vanguardas revolucionárias. Foi assim que em 1989, a partir da experiência da nossa corrente sindical mais ampla, decidiríamos dar um novo passo orgânico, que era, na prática, a transformação de uma organização política em tendência interna do partido, e já no 7º encontro do PT, em junho de 1990, nos apresentaríamos como Força Socialista.
1985, outubro
Passei para o INPS!
C
omecei a procurar emprego aos vinte anos. Não que isto fosse uma preocupação definitiva em minha vida naquele momento. Como estagiário de Ciências Sociais, dei aula de Geografia no CENI, Centro Educacional de Nova Iguaçu, no primeiro semestre de 1983, substituindo uma professora que entrara em licença-maternidade. Gostei da experiência, mas quando ela retornou, não havia outra vaga e não procurei outra escola. Dali até o fim de 1984, inscrevi-me em três concursos públicos: SUNAB, TRT e INPS. Faltei à prova da SUNAB, afinal eram algumas horas depois do casamento do amigo Goulart e não consegui acordar. No TRT, passei na primeira fase, mas fiquei reprovado na prova de datilografia – era em moderníssima máquina elétrica, dificílimo! Em outubro de 1984 fiquei em 36º lugar numa disputa para 30 vagas na agência de Nova Iguaçu do então INPS.

Sabia que ficaria numa fila, mas não tinha ideia da chance de ser chamado. Um ano depois, chega um telegrama em casa dizendo para eu me apresentar na rua Estados Unidos 300 em Nova Iguaçu (minha mãe perguntou se aquilo tinha a ver com o partido, afinal, a mensagem terminava com PT). Assinei uns papeis e deixei lá minha carteira de trabalho zerada (o estágio não teve nenhum registro). Acho que no mesmo dia fui ao Posto de Belford Roxo apresentar-me ao chefe Ubiraci, o Bira (já falecido).

O cargo era Agente Administrativo, de nível médio e eu não fazia a menor ideia do tipo de serviço. Não houve treinamento prévio e só depois eu faria alguns cursos internos relativos à concessão ou manutenção de benefícios da Previdência. Eu diria que o tipo de serviço é o mesmo de hoje com uma pequena diferença: ao invés de um computador com quase vinte programas conectados em rede, tínhamos à frente uma máquina de escrever antiga e formulários dos mais variados tipos. O cartão de procurador ou uma ordem de pagamento eram datilografados e entregues diretamente aos segurados, enquanto que informações de cadastros eram enviadas para, aí sim, digitalização em computadores que só existiam na Dataprev, que nos remetia, mensalmente, formulários contínuos, comprovantes de pagamentos, fichas de benefício e outras parafernálias.
Era natural e mais seguro que um funcionário novo trabalhasse na manutenção de benefícios e não na concessão, que exigia mais domínio da legislação. Adaptei-me com facilidade ao serviço, que, na prática, exigia pouco raciocínio. Sem contar que para cada pessoa atendida o passo inicial era achar a famosa FBM (Ficha de Benefício em Manutenção), que, em geral, estava arquivada em ordem numérica e por agência bancária. O problema era quando não estava lá...
O posto de Belford Roxo tinha um pouco mais de dez servidores, quase todos amigos entre si e costumávamos beber num bar em frente. Chicão, Maurício, Isis, Lia, Ismar, Vera, Ademir, Armando, Beth, Ferreira. Eu pegava um único ônibus (Olinda – Heliópolis) e levava meia hora de casa ao trabalho. Na minha primeira greve, em 1986, fui o único servidor do Posto de Belford Roxo que aderiu. Fui para uma assembleia no Hospital da Posse e encontrei um clima tenso, em que a Polícia Federal mantinha uma postura intimidatória. Ao revistarem minha mochila, viram um material com as resoluções do MCR (Movimento Comunista Revolucionário), organização política da qual eu participava. Fui levado para a sede da PF em Nova Iguaçu e, lá, tomei um chá de cadeira de mais de uma hora numa sala, sozinho. Depois, veio um cara conversar comigo e indagar o que era aquele documento. Disse-lhe que adquiri numa banca de materiais num evento nacional do PT e peguei para ler (ainda bem que ele não me indagou por que eu tinha uns cinco exemplares). O sujeito fez um discurso do tipo “pai para filho”, dizendo que eu era muito jovem, que não sabia do perigo de certas propostas, que esses socialistas atraem pessoas inocentes, feito quando se oferece chocolate a uma criança... Fui fotografado, “toquei piano” e depois me liberaram.
Nessa época, eu estava enrolado (e enrolando) na faculdade. Comecei a cursar Ciências Sociais na UFF em 1981, transferi-me para a UFRJ e alternava entre períodos trancados e períodos com matérias largadas, de modo que, no tempo de concluir o curso, ainda não tinha chegado à metade dele. Em 1985 tentei transferência para o curso de Comunicação, mas, como em meu currículo constavam várias matérias em que fui reprovado por falta ou por média, sequer pude fazer a prova interna de troca de curso. Nesta situação, não tive dificuldade em adaptar-me às seis horas diárias do trabalho e continuar não-fazendo a faculdade.
Ocorre que no final de 1986 e início de 1987 os postos do INPS passaram a ter horário único de atendimento entre 7h e 14h. Como eu estava matriculado no IFCS, cujas aulas eram somente pela manhã, não tinha como eu tentar trabalhar e estudar. Comecei a ver, então, a possibilidade de trocar de instituto, passando para o INAMPS (área de atendimento médico), onde os horários continuavam flexíveis. O chefe da agência de Nova Iguaçu, que equivalia a uma gerência regional, deu-me uma tarefa quase impossível: encontrar alguém para fazer uma permuta de instituto (coisa rara na época). Depois de um tempo, consegui o improvável, um funcionário do INAMPS que tinha interesse em se transferir para o INPS, cuja escala de trabalho dele era 24 por 120, ou seja, um plantão semanal de 24h.
Quando Gilberto Badaró, chefe de seguros sociais da agência, continuou colocando empecilhos para fazer a permuta, virei uma fera. No próprio posto em B. Roxo escutei algo do tipo “você tem que decidir entre estudar ou trabalhar”. Numa manhã (acho que em fevereiro de 1987), ao invés de ir trabalhar, fui para o departamento pessoal, cheguei no balcão e disse: “quero pedir demissão, o que tenho que fazer?”. A pessoa que me atendeu riu e perguntou se eu estava brincando. Disse-lhe que não. Alguns minutos depois, com embaraço – devia ser a primeira vez que aquilo estava acontecendo – ela veio com uns papéis. Li os formulários e os assinei; um deles tinha que pegar a assinatura do chefe do meu posto. “Mas, rapaz, o que é isso?” Disseram que aqui eu tinha que optar entre estudar e trabalhar; optei e vou arrumar outro emprego”. Depois de alguns dias, tive que voltar ao DP pois eu e meu chefe tínhamos invertido as assinaturas. “Assim, você está demitindo o Bira...”.
Acho que menos de um mês depois participei de uma seleção para uma vaga de secretário na AFBNDE, Associação dos Funcionários do BNDES, onde minha amiga Sandra Neiva era presidente. Minha amiga, mas a pessoa mais séria que já vi no trato das coisas públicas e coletivas. Concorri com mais um jovem. Ele foi ligeiramente melhor do que eu no teste de datilografia (mas eu datilografava razoavelmente bem, pois fizera um curso antes da prova do TRT) e eu fui melhor que ele na parte de redação. Assim, fui escolhido para meu novo emprego.
O trabalho era de secretaria mesmo. A diretoria da entidade reunia-se toda segunda-feira à tarde e eu fui escolhido para acompanhar, secretariar e, no início do expediente do dia seguinte, às 12h, entregar a relatoria da reunião para os diretores e para os departamentos da AFBNDE (secretaria, imprensa etc.). Foi um ótimo aprendizado técnico numa tarefa que não era enfadonha, afinal, eu acompanhava discussões políticas, negociações etc.
Nessa época, Cid Benjamin era o assessor político da direção e éramos grandes amigos de militância no PT. Ele saiu da AFBNDE ao passar num concurso para a Petrobrás. Meu nome foi indicado para substituí-lo na assessoria. Além de Sandra, toda a diretoria já convivia comigo e fui aceito, mesmo sabendo-se que aos 24 anos eu não tinha a experiência acumulada do Cid. No primeiro dia da supernova função, uma surpresa: um material da presidência do BNDES dizendo, em resumo, que naquele ano não haveria negociação salarial com os servidores. Olhamos aquilo e concluímos: “Esse Cid é um palhaço mesmo, antes de ir embora, perdeu tempo em nos tentar pregar uma peça...”. Começamos a ficar definitivamente nervosos quando telefonemas de funcionários de vários setores do banco confirmaram que receberam o mesmo comunicado impresso. Pela primeira vez desde que a AFBNDE conquistara a negociação coletiva, o novo presidente do BNDES, Márcio Fortes, estava determinando unilateralmente que não haveria negociação. A única coisa que o pânico instalado não podia fazer era nos levar à paralisia. Durante aquela tarde e noite e a manhã do dia seguinte tivemos que produzir uma resposta que fosse dura, altiva e que chamasse os funcionários do banco para a luta. Não me lembro de outro teste profissional tão intenso!
Além de Sandra, estabeleci ótimas relações com diretores como Paulo Altomar, Ilma Leda, Sérgio di Paula e Ângela. Dos funcionários, recordo-me de Nadir, Fernanda, Lourdes e Mônica, todas da secretaria, Adalmário e Ostinho, nosso jornalista.
A AFBNDE daquele período foi a experiência mais profissional que vi em entidades sindicais e de movimentos. Havia particularidades que facilitavam isso. O público-alvo da entidade reunia-se quase todo num único prédio, num padrão de classe média alta e num período de ascenso do movimento sindical e, em particular, no caso do Rio de Janeiro, do boom do movimento das estatais. Além disso, as gestões de Sandra Neiva à presidência (acho que dois mandatos) tinha a particularidade de ter à frente não apenas uma profissional superqualificada, mas uma militante revolucionária aplicada e com conteúdo, que compreendia as questões específicas de sua categoria e tentava inseri-las na situação geral do movimento sindical.
Além de tudo isso, a AFBNDE tinha uma cantina na sua própria sede, no 12º
 andar do prédio da galeria do Comércio, na Avenida Rio Branco. Ah, a cantina não tinha somente lanches baratos, mas também cerveja e até uísque. Eu saía às 19h e, para não pegar as imensas filas de ônibus na Praça Mauá e o trânsito alucinante, muitas vezes, era obrigado a ficar no bar fazendo o tempo passar. Havia eventos no bar, às vezes eu levava violão e chegamos a montar um grupo que ficava ensaiando umas músicas: eu, Paulo (que também tocava violão), Fernanda Rocca e Adalmário, que cantavam muito bem.
Em agosto de 1987, a então combativa CUT conquista o Sindicato dos Metalúrgicos, tendo como presidente Washington Costa, militante histórico da Ala Vermelha e agora no MCR. Devido à grande estrutura do sindicato, vários militantes foram trabalhar profissionalmente lá. Era um tempo de desmontar armadilhas deixadas pelos pelegos e ousar fazer uma administração comprometida com as lutas da categoria e do movimento em geral. Nesse contexto, no início de 1988, fui chamado – na verdade, uma discussão do MCR - para ser o administrador da subsede de Nova Iguaçu. Não pensei duas vezes, embora eu estivesse saindo de um patamar salarial de cerca de 12 salários-mínimos como assessor na AFBNDE para menos, muito menos (não me lembro quanto) no Sind. Metalúrgicos, e com um agravante: passamos um período em que o salário chegou a atrasar três meses. Não importava! Aos 25 anos, queria militância e não condição salarial.
Minha tarefa como administrador implicava em “liberar” os três diretores da subsede (Anibal, Raul e Samuca) das tarefas burocráticas para fazerem o trabalho político na categoria. Além disso, usaria minha experiência nos movimentos sociais em Nova Iguaçu para possibilitar que a estrutura física da subsede servisse a outras entidades populares. Passei a controlar o aluguel do salão de festas do sindicato (aniversários e casamentos o ano todo!), relação com os funcionários da subsede (alguns simpáticos à nova diretoria, outros nitidamente insatisfeitos e boicotadores), pagamento de taxas e serviços etc.. Dos diretores, Anibal dava-me uma boa retaguarda nessa parte, tanto pelo seu perfil e também porque não sentia lá muita firmeza no administrador aqui (eu deixava a desejar especialmente na relação com os funcionários). Na relação com outros movimentos, considero que demos um show de bola. A subsede serviu de local de organização dos estudantes secundaristas, de chapas do SEPE, da oposição comerciária (que em agosto de 1988 conquistou o Sindicato dos Comerciários), da organização da greve geral no primeiro semestre de 1989; fazíamos festas (o baile do bate-coxa, entre metalúrgicos e professores), assembleias de categorias em luta e várias outras coisas.
E cadê os trinta anos de INPS? Retomemos.
No início de 1989, lembrei que tinha que solucionar a baixa do INPS na minha carteira profissional. Ao chegar lá, ninguém achava meu processo. O impasse levou-me a repensar algumas coisas. Eu saí de um emprego público para estudar e, definitivamente, eu tinha abandonado a faculdade. Agora, sequer me dava ao trabalho de me inscrever nas matérias. A partir de 1988, ficando mais em Nova Iguaçu, cheguei a fazer vestibular na ABEU para Administração e comecei a cursar Letras na UNIG (confesso que não aguentei). Politicamente, a atuação no Sindicato dos Metalúrgicos era ótima, mas eu já tinha percebido as dificuldades para uma perspectiva de carreira profissional, e nem seria correto exigir isso do sindicato. Perguntei ao novo chefe do Seguro Social do INPS, Hamilton Melo, se havia alguma possibilidade da minha volta à instituição. Ele foi muito sincero, pediu-me uns quinze dias e disse que iria se informar na Superintendência-RJ. A resposta foi que sim, seria possível meu retorno desde que eu fizesse uma declaração desistindo do processo demissionário. Na medida em que o controle de pagamento era feito a partir do envio da folha de ponto de cada servidor, logicamente fiquei sem receber todo o período em que fiquei afastado. Assim, em abril de 1989, comecei a trabalhar no Posto de Benefício da Barros Jr., no centro de Nova Iguaçu. É quase inacreditável, mas, anos depois, na fila do Banco do Brasil, uma funcionária da Agência Estados Unidos confidenciou-me: “Vi a sacanagem que o Badaró fez com você. Peguei o seu processo e coloquei num lugar que nunca seria achado”. E eu sequer sei o nome da minha Anjo da Guarda!
O Posto da Barros Jr. era somente de atualização de aposentadorias e pensões, não concedia benefício nem trabalhava com auxílio-doença ou acidente do trabalho. Éramos vinte e poucos funcionários e uns 50 mil benefícios. Foi ali que constituí minha “família INSS” (a modificação de INPS para INSS foi em 1990). Como em todo ambiente, as afinidades forjaram um grupo que, além do trabalho e da cerveja protocolar, frequentava a casa do outro, ia a bailes, via as crianças crescerem etc.. Cabral, Fátima, Guilherme, Ivonety, Milene, Renata, Salete, todos sob a batuta de nosso indefectível e ranzinza chefe Fernando, esse grupo foi moldado no período entre a Barros Jr. e quando nosso posto foi anexado à sede da Agência, na rua Estados Unidos. Houve quem se agregou a nós como se sempre tivesse sido da turma, como Ana Luna e Marcos Lúcio, quem se transferiu (Lindalva, Roberto, Sandra...), quem trabalhou conosco brevíssimo tempo, os figuraças, enfim, muita gente, muita história.
Em 1990 (ou 1991?), um susto peculiar: no dia do pagamento, ao ver o saldo, tinha muito mais dinheiro na minha conta do que o salário. Não mexi no excedente e fiquei esperando o contracheque (que demorava quase um mês). Quando chegou, as rubricas de meu pagamento indicavam uma remuneração umas dez vezes maior do que faria jus. Na época, esse tipo de coisa só se resolvia no prédio da Pedro Lessa, no centro do Rio. Como já estava perto do próximo pagamento, resolvi esperar e, de novo, lá veio o salário dos meus sonhos. Fiquei preocupado, já tinha comentado no trabalho e, antes de ir ao setor de pagamento, procurei o Luiz Paulo Viveiros de Castro, um amigo e advogado experiente. Era uma época de muitos escândalos envolvendo o INPS – o famoso caso Jorgina (que morava no meu bairro!), maracutaias entre servidores, advogados e juízes em ações revisionais etc.. Viveiros disse-me que embora o valor fosse individualmente significativo, não parecia ser algum “esquema”. De qualquer forma, orientou-me a fazer ofício com cópia detalhando os depósitos, solicitando que o erro fosse corrigido e prontificando-me a ressarcir a instituição. Assim o fiz e pediram-me para voltar dali a alguns dias. Deram-me um boleto com o valor total (que já equivalia a três meses) e quitei. Explicaram-me que o funcionário que trabalhava com as fichas de um determinado grupo de servidores (em ordem alfabética) havia trocado o valor do meu salário de agente administrativo com o de um fiscal do INPS. Perguntas: ele repetiu o valor maior do Fulano para mim ou inverteu esses valores? Se inverteu, o Fulano foi reclamar ter recebido um valor dez vezes menor? O sistema existente não detectava um erro no montante a ser pago aos funcionários? O erro durou três meses, e se eu não fosse reclamar? Devo fazer mais perguntas? Para quem não está suportando os níveis atuais de inflação, informo que a inflação acumulada de 1990 foi de 1.476,56% e a de 1991, muito menor, ficou em 480,2%. Ah, isso é para dizer que, mesmo devolvendo o montante dos três meses de uma única vez, consegui comprar um aparelho de som doméstico com o que rendeu de juros.
Em 2000, a informatização passou a ser realidade nos postos de atendimento, do INSS e deixamos de utilizar o sistema operacional DOS e a impressora matricial. Só para se ter uma ideia, o serviço que uns vinte funcionários faziam na Barros Jr., agora é realizado por três ou quatro pessoas. Uma revolução. Teve muita gente que ainda não tinha computador em casa ou já estava perto da aposentadoria e custou a se adaptar. Também para o povo, houve um ganho, sem dúvida, embora alguns problemas estruturais tenham permanecido. A modernização permitiu agilidade, mas o número de servidores diminuiu numa proporção maior do que a capacidade de absorção de serviços pela informatização. O resultado é que o segurado não fica mais em pé na fila de madrugada, mas fica na sua casa – sem benefício – esperando a fila virtual, que pode demorar meses. A estrutura da instituição foi “profissionalizada” nos moldes neoliberais e meritocráticos, mirando resultados sem cuidar das condições. O que temos hoje – funcionários e população - é muito melhor do que antes, mas precisamos de algo radicalmente diferente, que combine modernidade e humanização.
Uma longa caminhada nesses trinta anos. Aprendi a ter compromisso, envolvimento, o que não é muito fácil quando o seu trabalho não é exatamente decorrência de uma formação ou vocação profissional, mas um conjunto meio solto de tarefas. Hoje, somos “técnicos do seguro social” (ou analista, se for de nível superior), ou seja, temos que ter noção da legislação e da dinâmica de funcionamento da seguridade pública vigente no país, papel da instituição em que trabalhamos. Isto é mais correto do que ser genericamente um “agente administrativo” ou “datilógrafo”. Além do meu afastamento entre 1987 e 1988 (qual o nome? Licença demissional?), estive cedido por duas vezes: entre abril de 2003 e abril de 2006 estive, primeiro, na Câmara dos Deputados e, depois, na Prefeitura de Nova Iguaçu, nos mandatos de deputado federal e prefeito de Lindberg. Entre setembro de 2007 e dezembro de 2009, voltei à Câmara, no mandato federal de Chico Alencar, de onde saí não por divergência política, mas pelo fato de que a gratificação de desempenho do INSS (que os cedidos, muito justamente, não recebem) tnha aumentado a um ponto que o mandato parlamentar não poderia cobrir – e ter 48 anos de idade não é a mesma coisa que ter 24.
Sempre acompanhei as discussões e lutas da categoria previdenciária, mas, rigorosamente, nunca fui um sindicalista. Participei, claro, de todas as greves (à exceção de quando não estava na instituição), porém, minha militância sempre esteve voltada para outros setores. Quando ingressei no INPS, eu era diretor da FAMERJ, depois priorizei a atuação partidária e em movimentos (ou tentativas de) ligados à comunicação e à cultura. Não considero isso melhor nem pior, são opções que fazemos e cada passo vai traçando um caminho. Corporativismo, burocratização e outros descaminhos do movimento sindical em geral têm o seu jeito próprio de se manifestar no Sindsprev-RJ. Fiquei contente com o surgimento de pessoas novas nesta greve de 2015, que demonstraram ser lutadoras e comprometidas com o trabalho. Precisamos mesmo de outro novo sindicalismo.
1995, dezembro
Perdi minha mãezinha
A
inda no primeiro semestre de 1995 eu e Elba resolvemos dar um passo para comprar uma casa. Leo tinha quatro anos e estávamos no nosso segundo aluguel. Vimos um anúncio de jornal de um condomínio no Cosmorama, bairro de Mesquita. Fomos lá e achamos interessante ...os folders e as maquetes, pois era um projeto na planta, mas, afinal, quem é que resiste a um stand de vendas e propaganda com o Antônio Fagundes? Optamos por um plano de construção em um ano e pagamento em 36 meses (acabou levando dois anos e meio para construir e pagamos em cinco). Para não passarmos muito aperto, fomos conversar com minha mãe para morarmos com ela e minha tia e, assim, fugir do aluguel enquanto a nova casa não ficasse pronta.
Em julho de 1995 voltei para a casinha que havia morado entre janeiro de 1969 e fevereiro de 1990. Era uma casa de dois quartos, onde os cômodos estavam em fila: dos fundos para a frente, cozinha e banheiro, um quarto, a sala e, por fim, outro quarto. Minha mãe passou para o quarto do meio para que eu, Elba e Leo nos acomodássemos no outro. Não me lembro como fizemos com os móveis.
Dona Claudimira era capixaba, do interior serrano, em Conceição do Castelo, hoje Venda Nova do Imigrante, terra originalmente de patrões italianos e trabalhadores afrodescendentes. Ela e meu pai, Manoel, eram primos. Já no Rio desde a década de 1940, ele voltou ao Espírito Santo para casar-se com ela e vieram morar em Santa Teresa, onde nasci em 1962. Quando morávamos em Bento Ribeiro, em 1968, meus pais se separaram. Depois de procurar uma casa em diversos lugares (lembro-me de ter ido num local muito deserto em Campo Grande), meu pai comprou uma casa em Mesquita para eu e minha mãe. Mudamos para lá e logo depois minha vó materna e uma tia que vivia com ela vieram morar conosco, para que minha mãe não ficasse sozinha comigo.
Dona Claudimira estudou até o primário, como se dizia antigamente, mas ajudava a alfabetizar pessoas e eu cheguei ao Jardim de Infância já sabendo escrever, para espanto da professora. Minha mãe tinha letra bonita e foi secretária das Filhas de Maria da igreja católica do bairro. Dona de casa e costureira, fazia blusas e vestidos para as mulheres do bairro e consertava roupas masculinas, cobrando tão pouco que até a clientela reclamava do preço baixo: “Mas é muito barato, moça!”. “Não tem problema, não”. Muito religiosa, participava das novenas no bairro, levando a Santa de uma casa a outra, entoando cânticos nas ruas de poeira ou de lama. Cuidou de colocar-me nas aulas de catecismo para que eu fizesse a Primeira Comunhão – quando o Padre Maurício perguntou-me em tom mais baixo: “Você já fez saliência?”. Perto dos meus quinze anos, forçou-me a entrar no curso de Crisma, da Catedral de Nova Iguaçu. A princípio, fui a contragosto, mas houve duas belas compensações. A primeira é que ela escolheu para meus padrinhos o casal Izaura e Álvaro Bragatto, de família italiana e amigos dela lá da roça, de quem me aproximei e tive o prazer de passar a conviver com sua bela família. A segunda compensação foi que as duas coordenadoras do curso (a belga Catarina e a mesquitense Marilourdes) eram adeptas da Teologia da Libertação e tive, com elas, as primeiras reflexões coletivas sobre um mundo com justiça, amor e igualdade.
Com menos de dois meses de nascido, minha mãe carregou-me para ver a parentaia no Espírito Santo, onde passamos a ir todos os anos pelo menos uma vez. Lá, ela tinha vinte e tantos afilhados e a gente sempre visitava a maioria deles. Além da tia Lira, que foi morar no Rio com a gente, ela tinha mais duas irmãs de criação, tia Jove e tia Eva. Tranquila e de um belo sorriso (apenas o sorriso, nunca uma risada), minha mãe gostava de cantar coisas da igreja e algumas músicas populares, especialmente Roberto Carlos. Ela gostava quando eu tocava violão. Na política, era eleitora do religioso reacionário Júlio Louzada, que se elegia deputado federal pela ARENA com os votos da “Oração da Ave Maria” (o copo com água benta não podia faltar). A partir de 1982, ela votava nos candidatos do PT que eu indicava. Com meus vinte e poucos anos, tentei convencê-la a voltar para o interior do Espírito Santo, devido à tranquilidade e à proximidade com os parentes. Aí, meu amigo Cosme disse-me: “Porra, Ewerson, quem tem que sair de casa é você!”. Com uma pensão alimentícia de um pouco mais de dois salários-mínimos, soube criar-me com muito afeto e carinho. Desde que separou de meu pai, minha mãe não teve mais ninguém.
Logo no primeiro mês que fomos morar na sua casa, ela veio me falar, preocupada, de um sangramento. Aos setenta e dois anos de idade isto não era normal. Longa distância entre teoria e prática, onde o conhecimento que adquiri na militância solidária às causas feministas e às questões das lutas das mulheres em geral, não fez com que eu me preocupasse em ter um acompanhamento permanente da saúde de minha mãe, uma mulher inteligente, mas com pouco acesso à informação e habituada à quase inexistência de serviços de saúde, fosse da roça do seu tempo de jovem ou da periferia de uma grande metrópole.
Ao levá-la a um ginecologista, ele indicou imediatamente um serviço oncológico. Antes disso, levei-a a um médico em Mesquita, um clínico-geral bem velhinho e conhecido por suas consultas espíritas paralelas. Depois de uma consulta médica simples, recolheu-se sozinho num canto da casa, dirigiu-se a mim, devolveu-me o dinheiro e disse para procurarmos um serviço especializado. Depois das primeiras consultas e dos exames, o estadiamento indicou câncer no útero com metástase para vários órgãos. A delicadeza e presteza da equipe do Hospital do Cãncer, no bairro da Saúde, não superaram a frieza da notícia: ela não ficaria internada porque não havia o que fazer; deram umas caixas de remédios paliativos. Na última semana de sua vida, dormi um dia na casa da minha amiga Iná, em Niterói, para poder chegar por volta das cinco da manhã num bairro de lá onde uma senhora famosa distribuía remédios que ela mesma fazia para vários tipos de doença, inclusive câncer. Chegando lá, vi muita gente, várias histórias. Fui atendido antes do final da manhã e saí com uns vidrinhos de remédios que dei à minha mãe durante alguns dias. O aniversário de cinco anos do Leo, no dia 18 de dezembro, foi bem modesto. Aperto da casa, aperto de grana, aperto no coração. Ela faleceu no dia 21 de dezembro, dentro do prazo que os médicos haviam falado. Do enterro, um aprendizado. Até então, eu era avesso a sepultamentos, afirmava que o importante era estar com as pessoas enquanto elas estavam vivas. Ali, vi a importância da presença de amigos no momento de partida de uma pessoa querida. É pelos mortos, mas também, e às vezes principalmente, pelos que ficam.
2005, novembro
Minha saída do PT
D
e trinta e quatro anos de minha militância partidária até agora, vinte e quatro deles foram no PT. Nele, vivi momentos fundamentais de um aprendizado político individual e coletivo, participei de uma rica trajetória pela redemocratização do país, do ascenso da esquerda, de vitórias, mas também de revezes, contradições, transformações e adaptações à ordem.
Não vou aqui falar da minha longa militância no PT, apenas dos motivos da minha saída. Ao chegar na presidência da república, as primeiras medidas do PT impactaram toda a sua militância. Um representante do grande empresariado no comando do Banco Central, uma Reforma da Previdência na lógica do mercado, atacando conquistas do funcionalismo e nenhuma medida de caráter popular. No debate da Reforma da Previdência, houve um momento em que trinta de um pouco mais de cem parlamentares petistas assinaram documento contra a proposta, mas, na votação, em agosto de 2003, somente quatro votaram contra - Babá (PA), Heloísa Helena (AL), João Fontes (SE) e Luciana Genro (RS), e seriam expulsos no final daquele ano - e oito abstiveram-se: Chico Alencar (RJ), Ivan Valente (SP), João Alfredo (CE), Maninha (DF), Mauro Passos (SC), Orlando Fantazzini (SP), Paulo Rubem (PE) e Walter Pinheiro (BA). Correntes, militantes e parlamentares independentes do “bloco da abstenção” passaram a discutir a saída do PT. O PSOL começou a ser organizado em 2004 e obteve seu registro em setembro de 2005.
A APS (Ação Popular Socialista) – junção da Força Socialista com alguns grupos regionais – fez um intenso debate ao longo de quase dois anos. As particularidades locais, inserção em diferentes movimentos sociais e o peso institucional em alguns estados implicaram em avaliações distintas sobre o momento e a disposição de saída. No Rio de Janeiro, ainda em 2003, sindicalistas (tendo à frente Marisa Gonzaga, Soneli e Dedé) e parte da juventude (Guilherme Vargues, Bruno Vieira, Rafael Maieiro, entre outros) desfiliaram-se do PT e, por consequência, desligaram-se da APS. Quando a corrente saiu do PT em setembro de 2005, perdemos poucos setores, dentre eles o deputado federal da BA, Nelson Pelegrino, e, no Rio, militantes como Zé Carlos Azevedo e Leci Alberti. Antônio Neiva mantinha boas relações conosco, mas já não era militante da APS, pois havia saído do PT em 1999 (para dirigir a candidatura de Vladimir Palmeira a prefeito pelo PSB, plano que não deu certo e resultou na permanência de Vladimir no PT), voltando em 2002. A APS saiu junto com uma parcela da DS, uma parcela da Articulação de Esquerda, os mandatos Chico Alencar e Orlando Fantazzini e militantes independentes.
Os setores da esquerda petista que saíram do partido em 2005 ainda participariam do PED, o Processo de Eleições Diretas para as direções partidárias, ocorrido em setembro daquele ano. A APS apoiou Plínio de Arruda Sampaio nacionalmente e eu fui candidato a presidente estadual, com o apoio, além da APS, da DS, de militantes independentes e de parte do Refazendo (Neiva e Vladimir optaram em apoiar Alberto Cantalice, do Campo Majoritário). De sete candidatos no estado, fui o terceiro colocado. Eu tinha total concordância com a saída do PT, mas solicitei internamente à APS que a minha desfiliação não fosse imediatamente após o 1º turno do PED. O 2º turno seria em novembro e eu queria discutir com algumas pessoas que tinham me apoiado. Além disso, queria dialogar também com militantes da esquerda petista em Nova Iguaçu, onde estávamos nos primeiros meses da experiência da administração de Lindberg prefeito. Houve um pouco de desgaste interno na APS, pois algumas pessoas não achavam que essa especificidade justificasse o adiamento da minha desfiliação. Talvez houvesse também quem desconfiasse que eu não fosse sair do PT.
No dia do 2º turno do PED, entregamos o documento “Ao Partido dos Trabalhadores”, datado de 05 de novembro de 2005, comunicando a saída de um grupo de pessoas de Nova Iguaçu e Mesquita. Destaco os trechos abaixo:
 “O Governo Lula não tem tido a coragem de enfrentar os pilares da dominação capitalista no Brasil e mantem uma política econômica que favorece o capital financeiro em detrimento do capital produtivo. As imensas desigualdades sociais são combatidas prioritariamente com medidas compensatórias e assistimos à implementação ou elaboração de contra-reformas. (...)
Para implantar tais medidas, o Governo lançou mão de uma aliança para a governabilidade tradicional e fisiológica. A crise ética e política que atingiu em cheio o PT e o governo é o desfecho dessa concepção e prática. A resposta do Governo à crise foi ampliar a aliança conservadora e tornar-se mais refém do grande capital. (...)
Todavia, a degeneração do PT não começou com a chegada ao governo federal. Em especial a partir da metade da década de 90, o Campo Majoritário acelerou a implementação de modificações políticas e regimentais que quebraram a espinha dorsal do PT: (...) o rebaixamento do horizonte programático combinado com a ação desenfreada do leque de alianças social e político. (...)
O PT deixou de ser referência para aqueles que acreditam na necessidade e possibilidade da transformação socialista. (...) Ao julgarmos o esgotamento deste instrumento, sentimo-nos na obrigação de dar continuidade à luta pelo projeto socialista que defendemos através de outros instrumentos. Manteremos a cabeça erguida para encontrar e construir novos rumos e novos horizontes”.
Parte do grupo que assinou o texto não formalizaria a desfiliação ao PT e alguns voltaram a atuar naquele partido. Os que saíram de fato foram: Alexandre Carvalho, Cleia Cunha, Emílio Araujo, Ewerson Cláudio, Leci Carvalho, Sônia Pecorone e Valdir Vicente. Na época, eu era o Ouvidor da Prefeitura de Nova Iguaçu e comuniquei minha saída, colocando o cargo à disposição. Lindberg disse que não via problema na minha permanência no cargo. Estávamos fechando o primeiro ano de mandato e nos setores mais críticos aos rumos do PT rolavam muitas discussões se seria possível a implementação de políticas mais à esquerda, ainda que parciais e setoriais. O grupo de educadores que tinha Emílio Araujo à frente[5] (subsecretário de Educação) saiu do governo em dezembro de 2005. Eu pedi exoneração em abril de 2006.
Para mim, os impasses e esgotamentos do governo petista em Nova Iguaçu foram decorrência dos rumos gerais do PT. Com as particularidades do perfil individual de cada “comandante”, as administrações de Lindberg em Nova Iguaçu, de Arthur Messias em Mesquita ou de qualquer outro “modo petista” dos mandatos mais recentes, escolheram as mesmas opções: o sentimento mudancista presente na população não foi impulsionado pela estruturação de mecanismos de participação popular que revertesse práticas tradicionais de governabilidade; não se enfrentou interesses concretos das elites e pouquíssimas ações setoriais deixaram o patamar rebaixado de ganhos ocasionais para transformarem-se em políticas de Estado, efetivamente públicas e permanentes.
Não fiquei contente em sair do PT, mas foi uma decisão absolutamente necessária, pois entendo que partidos e movimentos são ferramentas, instrumentos para viabilizar projetos coletivos de sociedade. Saí para prosseguir naquilo que continuei e continuo pensando para, através do PSOL e de movimentos sociais combativos, seguir lutando para superar o capitalismo e construir o sonho socialista.
1965, dezembro
Mengão campeão carioca!
E
u tinha três anos e, obviamente, não me lembro de nada, mas foi isso: o Botafogo já não tinha Didi e Nilton Santos, Garrincha praticamente não jogou o campeonato, “só” restando Gerson e Jairzinho. Então, o poderoso Mengão de, de ...Carlinhos e do atacante Silva, pronto!, ganhou um Fla-Flu de 2 a 1 na penúltima rodada e foi campeão por antecipação. Bom demais!


"Antes de mim vieram os velhos.
Os jovens vieram depois de mim.
E estamos todos aqui".
(Adriana Calcanhoto)

Para:
Antônio Neiva
Cláudia Perluxo
Emílio Araujo
Iná Meireles
João Pedro
Robson Gabiru
Sabá
Sidney Martinusso

Washington Costa


Dezembro de 2015/janeiro de 2016


[1] O título deste texto é inspirado na música “De quinze prá trás”, de Xangai e Pinto Pelado. É uma brincadeira, em ritmo nordestino, decrescendo a contagem a partir do número quinze:
“Quinze, catorze, treze, doze, onze, dez, nove
Só faz lama quando chove e enche o rio Gamun
Passu-preto que o bico tem um vinco é o Anum
É oito, é sete, é seis, é cinco, é quatro, é três, é dois, é um”
[2] Dissertação: “As Associações de Moradores vinculadas à FAMERJ e a construção de uma educação para a cidadania através da politização de base - o Movimento Associativo de Moradores do Rio: uma nova política está nas ruas” - Francisco Rodrigues de Alencar Filho – FGV, 1990.
[3] Artigo: “Assim se passaram aqueles dez anos” – Ewerson Claúdio de Azevedo, 1988
[4] Artigo: “Pelo abraço mais forte, obrigado, companheiro” – Thiago (codnome), 1987
[5] Um grupo de educadores (alguns compuseram a Secretaria Municipal de Educação de Nova Iguaçu no ano de 2005) escreveu o livro: “Governo Lindberg: entre a escola cidadã e a exclusão educacional” – Emílio Araujo, Náira Fonseca Fois, Noemi Araújo, Aurora Lopes Simões, Solange Vasques, Marizete Dias Barros, Rosilene Gomes Souza de Cerqueira, Denise Leopoldo, Maria da Conceição de Carvalho Rosa (Nalu) e Marliza Bodê de Moraes. 2006, CEAPE (Centro de Estudos, Ação e Pesquisa Educacional).




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Pronto, com a impressora funcionando, consegui escanear o primeiro número da Nós - arte, cultura e sociedade em revista.

Era final de março de 2001 e estávamos no SESC-Nova Iguaçu para o lançamento da revista. Muita correria, mil tarefas. O gerente do SESC estabeleceu ótima relação conosco e conseguir o teatro, o salão e um bom coquetel foi providencial e relativamente fácil. 

Apesar de uma chuva típica das "águas de março fechando o verão", quase 200 pessoas estavam no auditório. Nosso poeta J. R. Júnior apresentou sua poesia premiada em festivais e Roberto Lara deu início ao seu show. E nada do PC chegar da 3 Graf com o nosso rebento, a revista. 

Quase terminando o show, nosso amigo baixinho chega com uns pacotes. E agora vem o principal detalhe: nós (os produtores) ainda não tínhamos visto a capa da revista, feita por Cézar Ray. A comunicação via internet ainda engatinhava. Depois de uns dois meses de já ter juntado fotos da galera toda e tê-las entregues a Ray, ele não dava notícias. Chegamos a pensar em pedir a outra pessoa para fazer uma capa. De repente, Cézar Ray diz que aprontou e ia encaminhar os detalhes técnicos direto com a gráfica. Quando pegamos a revista nas mãos ...explodimos em surpresa e alegria. Não poderia ter havido ideia melhor para expressar o esforço coletivo para criar um veículo de comunicação que mostrasse diversas linguagens artísticas, lutas, ideias, enfim, a efervescência cultural de uma parte da Baixada Fluminense. 

Desde o início, NÓS foi uma ideia coletiva. Já havia uma penca de sugestão de nome (lembro-me de Veredas, Janela, Caldo de Cultura...), até que um dia César Ray (ele de novo) adentra o Bar do Moduan vestido com uma camiseta onde estava escrito simplesmente "Nós". Pronto. Acabaram as divergências e o batismo foi definido. 

A pauta continha poesia (de mulheres, para comemorar o 8 de março), contos, resenhas de discos e livros (inclusive "Dos barões ao extermínio", que ainda estava no prelo), fotos, quadros, os 500 anos do Brasil, os cursos de Pré-Vestibular para Negros e Carentes, transgênicos, MP3 (assunto novo na época!), entre outros. 

Aí vai a ficha técnica: 

Editores/produtores: Cláudio Bastos, Eduardo França (Dudu), Ewerson Cláudio e Rogério Costa (e com a ajuda substancial de Ane Alves). 

Artigos, matérias, resenhas, contos, poesias, entrevista: Aércio de Oliveira, Carlos Daguerre, Chico Alencar, Daniel Guerra, Elisa Lucinda, Ewerson Cláudio, Ivna Macera,  Ivone Landim, Jorge Cardozo, José Chacon, José Cláudio Souza Alves, Laranja (J. A. Lima), Lírian Tabosa, Lúcia Barros, Marcelo Quirino, Roberto Lara, Rogério Costa, Ronaldo Paz e Sil. 

Patrocinadores: Bazar Mariáh, Billy Bar, Boca da Baixada (site), Carlos A. Nunes advogado, CEPAENI Oficina do Fazer, Cid Omar Clínica Lena Tuppan, Corretor de Seguros, Colégio e curso Alternativa, CREA-RJ, Jerri Contabilidade, Lo-Bão Chopperia, Mata Chamas, Medcor, Nilton Faria & Carlos Ferreira Advogados, Oficina do Computador, Pizza & Pasta, Programa Boca Livre (Rádio Bandeirantes), Recanto do Fazer, SEPE (D. Caxias e N. Iguaçu).

Impressão: 3 Graf




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Folia de Reis: tradição através de gerações
Uma manhã ensolarada de domingo no mês de dezembro. Rua Donato, no bairro Santo Elias, próximo ao CIEP 111-Gelson Freitas. Mas havia algo diferente ali naquele dia. Os moradores aglutinaram-se para ver uma apresentação de Folia de Reis do grupo Sete Estrelas do Rosário de Maria, do bairro da Chatuba, também em Mesquita.

A dança foi apresentada na rua, em frente ao bar do Seu Paulino e Dona Glorinha; os cânticos aconteceram no Terreirão do bar. Os mais velhos (com, pelo menos, uns 40 anos), relembraram os tempos em que grupos de Folia de Reis, no mês de janeiro, andavam pelas ruas com seus cantos e fantasias e apresentavam-se nas casas das pessoas, onde lhes eram ofertadas comidas e bebidas. Hoje, existem poucos grupos desses foliões e, por sorte, Mesquita é um desses locais de resistência.

O grupo Sete Estrelas do Rosário de Maria tem cerca de 170 anos e sua tradição é passada de geração em geração da família de Dona Mariana, hoje com 80 anos, líder do grupo e que faz a abertura e o encerramento das apresentações.

A Folia de Reis foi trazida para o Brasil pelos portugueses, mas sua tradição é mantida principalmente pela população de origem negra. Histórias são contadas a partir da dança e de versos cantados em forma de desafio.

(Texto: Ewerson Cláudio - publicado no jornal ComCausa, em abril de 2009)





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Lamarca
(história viva através da luta e de meus amigos)

Os 40 anos da morte de Carlos Lamarca foram lembrados com um emocionante evento evento realizado na última sexta-feira, 16 de setembro, no SEAERJ ( Sociedade dos Engenheiros e Arquitetos do Estado do Rio de Janeiro), na Glória. Na ocasião, foi exibido o filme "Do Buriti à Pintada - Lamarca e Zequinha na Bahia", de Reizinho Pereira dos Santos.

Embora tenha chegado atrasado devido ao trabalho e à distância - só vi o filme todo depois, em casa -, fiquei emocionado com o clima do debate, onde estavam vários contemporâneos de Lamarca na resistência à ditadura militar. 

Eu era um menino naquela época, mas o evento possibilitou-me duas coisas: ajudar a recompor este importante momento da recente história do Brasil e rever amig@s meus que viveram aqueles tempos, como Luiz Rodolfo Viveiros de Castro, o Gaiola (que coordenou a atividade), César Benjamin, Lúcia (a loira, como era chamada na época), Cid Benjamin, Antônio Neiva e Iná Meireles. De quebra, o gostoso encontro com outras pessoas que, como eu, não viveram aquele período, mas que, através da luta, aprenderam "que aqui passaram nossos ancestrais".

Foi assim que, antes de ir para a última reunião da noite, passei pequenos momentos felizes na presença de Washington Costa, Sandra Carvalho de Souza, José Carlos Azevedo, Gagocha, Sílvio Marinatto, Flávio Aniceto e Robertinha, entre outr@s. Valeu mesmo!
Flávio Aniceto, eu e Sílvio Marinatto


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1962
(Blog de leonino dá nisso)
As coisas estavam um pouco agitadas em 1962. Ainda antes da gloriosa data de nove de agosto, a luta anticolonial prosseguia firme (isso mesmo: há menos de 50 anos, o tão chique primeiro mundo subjugava inúmeros países na América Central, África e na Ásia!). Jamaica, Argélia e Samoa Ocidental proclamam sua independência; Angola forma seu Governo Revolucionário no exílio e è fundada a Frente de Libertação de Moçambique. Enquanto acontecia a primeira transmissão via satellite, Fidel Castro seria excomungado pelo Papa Angelo Giuseppe Roncalli, o João XXIII. Jimi Hendrix era dispensado do exército e Bob Dylan gravava ‘Blowin In The Wind’. 

Na Casa Branca, começa-se a veicular a possibilidade de golpe no Brasil, segundo Lincoln Gordon, embaixador americano aqui e informante do período pré-golpe. João Goulart, além de apresentar ao país as reformas de base no 1º de maio em Volta Redonda, cria a Universidade de Brasília, tendo Darcy Ribeiro como primeiro reitor. Surgiria também o 13º salário (Lei 4.090); o Acre passaria à condição de estado e seria fabricado o primeiro par de sandálias Havaianas, da São Paulo Alpargatas. Anselmo Duarte dirigiria o filme “O pagador de promessas”. 

No futebol, o Brasil – com Pelé machucado e atuações fenomenais de Garrincha - tornou-se bicampeão mundial (3 a 1 na Tchecoslováquia). Ademir da Guia fez sua primeira partida oficial pelo Palmeiras e o Mengão aplicou uma fantástica goleada de 7 a 0 ... no Canto do Rio! 

A Portela vence o carnaval carioca pela 16ª vez (nessa época era comum a Portela ganhar o desfile) e a argentina Norma Nolan é eleita Miss Universo. 

Agora, atenção para os espetaculares eventos ocorridos em nove de agosto de mil, novecentos e sessenta e dois: o Corinthians vence o Jabaquara por 3 a 1; é criada a Paróquia El Salvador del Delta em Dique Luján e morre Hermann Hesse, escritor alemão, Nobel de literatura em 1946 ("Um ser humano só cumpre o seu dever quando tenta aperfeiçoar os dotes que a natureza lhe deu”). Não me venha perguntar o que é ou onde fica Dique Luján (localidade a 50km de Buenos Aires), mas eu sei quem é Hermann Hesse, que comecei a ler com dezesseis anos e fiquei maravilhado. 

Foi nesse embalo que naquela quinta-feira (será que é por isso que eu gosto de quintas-feiras?), às 08h e 45 min., Dona Claudimira deu-me à luz no Hospital dos Servidores, próximo à Praça Mauá, no centro do Rio de Janeiro. Parece que o excesso de luz me cegou um pouquinho (na verdade, um poucão!). Não sei se já tinha acordo, mas o fato é que Seu Manoel, meu pai, juntou sua mania de gostar de coisas norte-americanas com a denominação que, mesmo sem ser sobrenome, caracterizava sua família lá no interior montanhoso do Espírito Santo. Assim estava produzido e nomeado esse Ewerson Cláudio. 

Antes de mim, naquele mesmo 1962, nasceram Jon Bon Jovi, Magic Paula, Luíza Brunet, Bussunda e Tom Cruise. Depois de mim, ainda vieram Paula Toller, Higuita , Demi Moore, Jodie Foster e Cassia Eller 

Daí pra frente, o mundo daria várias mostras de que jamais seria o mesmo. Pete Best foi substituído por Ringo Starr, nos Beatles; Darcy Ribeiro assumiu o Ministério da Educação; teve início a crise dos mísseis russos em Cuba; houve a proclamação da República de Tanganica (Tanzânia); Elis Regina recebeu em Porto Alegre o prêmio de melhor cantora do ano e saiu o concurso nº 0001 da Loteria Federal (anota aí as milhares sorteadas: 05.349 / 38.031 / 26.492 / 25.151 e 01.416). E o meu Flamengo voltaria a perder o título carioca para o Botafogo (3 a 0). Eram tempos difíceis para Joubert, Jordan, Carlinhos, Dida e Gérson enfrentarem Manga, Nilton Santos, Garrincha, Quarentinha, Amarildo e Zagalo. 

Ao apagar suas luzes, 1962 tinha levado gente famosa como Natalia Sedova (companheira de Trotsky), Manuel de Abreu (médico brasileiro inventor da abreugrafia – pois é, não foi o Abreu...), Candido Portinari, Georgios Papanikolaou, (médico grego), Stuart Sutcliffe, (baixista e membro dos Beatles), Marilyn Monroe e a nossa escritora, feminista, militante, Patrícia Rehder Galvão, a eternamente Pagu. 

Mas, calma. Não ficarei apenas alinhavando fatos colhidos na internet. É que, óbvio, não tenho nenhuma memória dos tempos em que estava na barriga de minha mãe. Dos meus primeiros quatro meses e vinte e um dias, só sei que, já em setembro, fui com minha mãe a Conceição do Castelo, Espírito Santo, onde fui devidamente apresentado à parentaia.

(trechos de meu "Anuário", que, um dia, continuarei)


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Peladão

Peladão - a origem.jpg
Na formação - em pé: Clenilson Belo, Raul Sudré (já falecido), Ewerson Cláudio, Afonso Ulisses e Luiz Fernandes; agachados: Humberto, Marcos José, Cláudio Sacramento e Nilton Faria. Na época, militantes do Sindicato dos Comerciários, Sindicato dos Metalúrgicos, operários da Bayer, ativistas de associações de moradores, entre outras atividades.
Esta partida ocorreu no campo do Seminário Paulo VI, em Nova Iguaçu, por volta de 1993. Alguém teve a ideia de um jogo entre o PT-Nova Iguaçu e o PT-Belford Roxo. Depois, por iniciativa de Humberto e Ulisses, a pelada continuaria no campo do Pombal. A 1ª fase do Peladão durou até 2000 e, dez anos depois, retomou com toda força e dura até hoje. A exibição continua britanicamente marcada para as 10h e só começa depois do meio-dia. Agora, além dos barrigudos quarentões, desfilam também os filhos (que alguns, juram, só vão para não perderem a mesada).



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Semana de Cinema Nacional no Teatro Arcádia


Acho que era início de 1979. Interessei-me pela propaganda de uma mostra de cinema nacional no Teatro Arcádia. Eu, Neco e Manoel já começávamos a sair do bairro Santo Elias e circular pelo centro de Nova Iguaçu. Às vezes, a gente ía nas Casas Sendas e comprava Pitu (não me lembro a moeda, mas o valor era $ 27,10); daí, a gente procurava um botequim, pedia coca-cola e três copos e mandava ver! Certa vez, ficamos na porta do Arcádia, onde tinha um grupo tocando as músicas de MPB que começávamos a gostar (o violeiro era o Toni). De repente, duas pessoas foram até a esquina, olharam para um lado e para outro e, de lá, deram “ok” para que se cantasse “Pra não dizer que eu não falei de flores” (a música ainda estava censurada e podia pintar polícia...).

Na mostra de cinema, vi “Como era gostoso o meu francês”, “A navalha na carne”, “Dois perdidos numa noite suja”, “O assalto ao trem pagador” e “Lições de amor”. Num desses dias, uma jovem (a Aninha da Posse) anunciou uma reunião que pretendia discutir sobre o chamado Ensino Profissionalizante, que tinha mudado a grade curricular do 2º grau, diminuindo a carga horária de matérias de formação geral para introduzir o aprendizado de profissões.

Gostei da prosa e compareci à reunião. Olhando de hoje, foi uma mudança de patamar em minha vida. Da realidade decadente do ensino brasileiro, passamos a discutir as raízes políticas daquela situação, o capitalismo, o socialismo e a revolução. Éramos o Grupo Secundarista, uma tentativa de reestruturar a entidade estudantil cassada pela Ditadura Militar. Nessa bela experiência, conheci Marcos José, Jorge Cardozo, Colinha (Id Marcos), Aninha da Posse, Dalila, Albertinho (Alberto Cantalice), Luiz de Shangri-lá, Brother (Aluísio), Niltinho (Nilton Faria) e Edmar de Queimados, entre outros.

Não conseguimos remontar a entidade, mas refletíamos muito. As reuniões eram aos sábados, 18h. Nunca terminavam antes das 22h e sempre concluíamos os assuntos nos botequins, com direito a poesias em guardanapos e tudo mais...



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Bomba na catedral de Nova Iguaçu

Assim que completei 15 anos, em 1977, minha saudosa mãezinha, muito católica, obrigou-me a fazer o curso de Crisma na catedral de Nova Iguaçu. No primeiro dia, fui obrigado, arrastando-me. Chegando lá, encontrei duas coordenadoras de esquerda (Marilourdes, que, clandestinamente era do MR-8, e Catarina, uma belga progressista). O curso discutia o cristianismo a partir do enfoque social. Acabei gostando, fiquei por ali, fui crismado em 1978 (confirmação do batismo) e ainda participei do Grupo de Perseverança até 1979. Tive ali meus primeiros raios de conscientização.

Num dia do curso – sempre aos domingos, depois da missa das oito e meia – cheguei e deparei-me com uma situação inusitada: não haveria reunião. No dia anterior jogaram uma bomba na Catedral que destruiu o altar. O atentado foi assumido em panfleto pelo Comando de Caça aos Comunistas, uma organização paramilitar (Dom Adriano Hipólito, bispo progressista da Diocese de Nova Iguaçu, já havia sido seqüestrado em setembro de 1976, quando foi encontrado nu e pintado de vermelho, acusado de bispo comunista).

Ficamos chocados. No domingo seguinte, fizemos painéis com fotos e textos mostrando a perseguição a Jesus e fazendo o paralelo com a Igreja do Povo que estávamos ali ajudando a construir.



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Meus padrinhos de MPB

Em algum momento do ano de 1977, eu e um amigo começamos a ouvir música brasileira. Antes, tínhamos preferência pelas várias vertentes da Soul Music, do som forte e contagiante de James Brown (que reinava nas “festinhas americanas” do bairro) aos ritmos melosos para dançar agarradinho: The Commodors, The Stylistics, Blue Magic, Stevie Wonder, Billy Paul, Barry White...

Por influência de Rato e Carlinhos Tirica, fomos a uma loja em Nilópolis, em frente à estação, comprar o LP do tal de Belchior. Eu já o tinha visto cantando “Apenas um rapaz latino americano” no Fantástico e a música era bem tocada nas rádios. Mas, será que valia à pena levar um long play inteiro? Música brasileira não tem balanço... Ficamos na dúvida entre Belchior e o já conhecido por nós K. C. & The Sunshine Band, que fazia uma mistura de R&B e funk. Suas músicas mais conhecidas nas paradas de sucesso (o que fazia vender milhares de Compactos Simples, um vinil com uma música de cada lado) eram That’s the way (I like it) e Shake, shake, shake.

O vendedor garantiu que, se quiséssemos, poderíamos fazer a troca depois. Então, lá foram Neco e Picolé (sobre apelidos, falo outra hora) com o cearense debaixo do braço. Escutamos aquela voz fanhosa e as letras quilométricas. Ao final, ficamos parados, olhando um para o outro. Era algo estranho, mas gostamos. Ouvimos de novo. Não tinha o swing que nossos ouvidos estavam acostumados. Mas tinha força, sentimento e dizia alguma coisa: “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve / Correta, branca, suave, muita limpa, muito leve / Sons, palavras, são navalhas / E eu não posso cantar como convém / Sem querer ferir ninguém...”. Não voltamos à loja de disco e ficamos com o cearense das letras quilométricas.

A partir dali, fizemos o giro total para a MPB. Havia uma coleção (Nova História da MPB) que era vendida nas bancas de jornal. O preço era barato e vinha com fascículos de textos e ilustrações. Assim, Chico Buarque, Paulinho da Viola e Edu Lobo, entre outros, tornaram-se íntimos em minha vida

Desse disco do Belchior (Alucinação, 1976 / Polygram), Elis Regina gravou “Como nossos pais” e “Velha roupa colorida” (no disco “Falso brilhante, 1976, Phonogran). O que era muito bom tornou-se uma obra-prima. Em homenagem ao meu “padrinho” de MPB e “madrinha”, creio, de todos nós, Elis Regina, terei um quadro fixo no blog: no PAREDE DA MEMÓRIA contarei episódios a partir da minha vivência pessoal, daquele ângulo exclusivo que só a câmera de cada um consegue captar.